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O (des)valor da vida

05/10/2015

O (des)valor da vida

O assunto deste breve artigo não impactou tanto a sociedade brasileira quanto os 7x1 da Alemanha sobre o Brasil na Copa de 2014. Também não ganhou as manchetes diárias dos jornais, como os inúmeros escândalos políticos que ocorrem nestes trópicos (embora exista uma íntima relação entre as duas situações, na minha opinião). Contudo, precisamos nos lembrar todos os dias: vivemos no país com o maior número global de homicídios – quase 60 mil! – do mundo, entre os que não estão oficialmente em guerra. Isso sem considerar as tentativas de homicídios e outros graves crimes violentos!

O mito do brasileiro cordial caiu por terra, coisa que nunca fomos, já que é tão da nossa cultura evitar o embate direto quanto o ataque traiçoeiro e covarde. Não é fácil apontar as causas dessa pandemia de violência que atinge o Brasil, mas, seguramente, a certeza da impunidade serve de combustível para aqueles que tramam e atentam contra a vida alheia.

Novamente, os números estão à disposição de quem quiser tirar a prova: enquanto no Brasil menos de 10% dos homicídios são elucidados, no Chile tal índice sobe para 98%(!) de esclarecimentos. Na outra ponta, ou seja, nas estatísticas do número de assassinatos, em 2012, o Chile teve uma taxa de homicídios de 3,1 por 100 mil habitantes, enquanto o Brasil apresentou uma taxa de 25,2. Mera coincidência? Não! Consequência de uma política criminal eficiente!

Além disso, nas raras oportunidades em que a apuração de um homicídio supera a fase de investigação, nos deparamos com o rito processual arcaico e quase canônico dos crimes de competência do Tribunal do Júri. No Brasil, apenas os crimes dolosos – isto é, intencionais – contra a vida são julgadas pelo tribunal popular. A participação da sociedade no julgamento de seus pares é uma conquista que remonta à Idade Média, época em que tiranos decidiam unilateralmente sobre a vida e a morte de seus súditos. Séculos depois, o rito brasileiro do Tribunal do Júri se tornou um dos instrumentos de impunidade e fomento à violência no país.

Enquanto dezenas de parlamentares vociferam em favor da redução da maioridade penal, poucos parecem se importar com o fato de o crime de homicídio ter o rito processual mais truncado, lento e passível de chicanas do ordenamento jurídico brasileiro. Um crime contra a vida tem a sua apuração iniciada em uma fase extrajudicial, geralmente conduzida pela polícia. Após isso, havendo elementos, o Ministério Público oferece a denúncia que, quando recebida pelo Juiz, dá início a ação penal. Em seguida, ocorre a realização das provas, com a juntada de documentos e oitiva de testemunhas.

Por fim, havendo a prova do crime e elementos mínimos de autoria, o Juiz decide pelo julgamento da causa pelo Tribunal do Júri. Já em plenário, perante os jurados, as provas deverão ser novamente apresentadas, as testemunhas novamente ouvidas e, ao final, realizados debates entre o Ministério Público e a defesa, que poderão resumir os seus argumentos a encenações teatrais. Ao final, o jurado, que nunca antes teve contato com o processo, terá de decidir sobre a culpa ou inocência do réu, deparando-se com perguntas por vezes de difícil compreensão para o cidadão leigo em Direito.

No meio disso tudo, recursos, infindáveis recursos, para todas as decisões e em todas as instâncias... Não é incomum que um homicida influente, bem assessorado e envolvido num caso pouco midiático, leve dez anos ou mais para ser julgado em plenário. E com possibilidades de recursos depois... Enquanto isso, um miserável que é flagrado traficando dez gramas de “crack” ou praticando um furto com estilete, muitas vezes é julgado em meses e com penas que não diferenciam muito da de um sujeito que deliberadamente mata outro, nas raras oportunidades em que há condenação, é claro.

E quando há condenação? Bom, caso seja pelo denominado “homicídio simples”, em virtude de uma certa “doutrina da pena mínima”, que impera nos tribunais, a pena será fixada em seis anos ou um pouco mais do que isso. O regime de cumprimento da pena provavelmente será o semiaberto (apelidado de “mais que aberto”, cumprido, em uma versão distorcida, com encarceramento noturno em dias úteis e integral aos finais de semana em casa do albergado), com progressão para o regime aberto após o transcurso de um sexto da pena.

Ou seja, provavelmente o homicida condenado sairá pela mesma porta que os familiares e amigos da vítima. Tal aberração é praticamente um apelo à Lei de Talião, ao justiçamento, à vingança privada! E não se enganem: mesmo num bárbaro “homicídio qualificado”, dificilmente o assassino permanecerá mais de dez anos em regime fechado. E assim segue o círculo vicioso de violência nesta terra de gente cordial...

Paulo Eduardo Penna Prado, Promotor de Justiça




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